quarta-feira, 22 de maio de 2013

Tão secretas, vestidas nas suas melhores roupas, as vezes saem para passear todas juntas as minhas mágoas. Com sorrisos amarelos no rosto, dão um passo por vez, como se carregassem grandes pedras de concreto amarradas ao tornozelo, tão escravas são da minha existência. E eu, escrava delas, não resisto. Olho-as de longe, com olhos vidrados, e aguardo pacientemente que resolvam ser boas criadas-senhoras e voltem a sentar-se, comportadas, lá no canto desse sofá velho e mal cuidado a meia luz, para que eu possa arrumar toda a impetuosidade de seus passeios.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Queria tanto poesia que falasse por ela,
daquela que bem lá no fundo
acalmasse a angústia que é viver

Que um dia pegou caneta e papel
e escreveu suas próprias
e delicadas infelicidades.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

meu amor,
os óculos
não fazem parte
de mim

terça-feira, 9 de abril de 2013

Ela entrou tímida mas orgulhosa. "Trinta e sete", "oitenta e dois", milhos nas cartelas. Entretidas que estavam, ninguém reparou que caminhava calmamente. Continuou andando a passos largos, nem feliz nem triste, num raro momento em que não importa estar nem um nem outro. Cheiro de pastel. Comprou dois, um café e sentou satisfeita, cadeira de palha, mesa de madeira, de frente para todas. "Oi tudo bem como vai", "quanto tempo nossa apareça!", "ah, filha da Rose, moça bonita, caprichou, hein?". Baixou a guarda, como tão poucas vezes, "oi tudo bem como vai dois pasteis? puxa quanta fome!". Monstros se erguem das cadeiras, apontam, riem e a devoram.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Once she was free, free to love people, the world and their wierdness. She believed her world was real, solid; peacefully existing apart of the one world she would wake up, bursh her teeth and go to school every morning. She never worried about it, it was all set. She was liquid, a cameleon, just feeling an inner indecisiveness that was as wide and as wavering as the ocean. The colours mixed one day, though. They had always been mixed in fact... It was just a matter of perceiving it with eyes, and not heart. Then it came all to light, and light destroys when too bright, and light destroyed: pittyless, merciless. Darkness would be better company. She visits it sometimes.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Essas nossas carnes macias
Que o tempo mastigou,
E cuspiu

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Era gordo e imenso. Vermelho sangue de tanta alma que me tinha sugado. Eu, que já não tinha de sobra, fui logo lhe lançando o traveseiro. A marca do massacre: até hoje.
Não sei o que eu faria sem as cores. Pinto para acalmar o mundo: as minhas cores favoritas são os verdes e os marrons, mas não por uma questão de espírito. Arrepia-me a alma quando  ouço daqueles fantásticos animais marinhos que enxergam milhares de cores a mais do que nós simples seres humanos. Qual o sentido da vida em saber da existência de outras cores e ser incapaz de vê-las? É angustiadamente frustrante e fascinante. Relacionar-se com as pessoas é de um sentimento muito parecido. São tantas cores, algumas tão familiares, algumas tão exóticas, algumas que eu nem mesmo consigo reconhecer. Embora eu tire as marrons e verdes de letra, sou cega para algumas dessas cores, a maioria delas! Aprende-se, é claro, a reconhecer cores: aprende-se a diferenciar o verde vessiê e o terra verde natural. Há cores, no entanto, que são inevitavelmente irreconhecíveis. Quando me deparo com estas cores - e elas estão tão próximas - doses iguais de angústia, frustração e fascínio são injetadas direto em minhas veias de vermelho cádmio tão despreparadas. 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Tinha um amor tão profundo
que logo ia lhe tirando
uma lasca do braço.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Inglês, francês, alemão, espanhol, tiro de letra.
Quero ver entender o silêncio.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

As mãos apoiadas na superfície fria do granito: uma pálida, a outra culpada. Gotas rubras se desenhavam pelo chão acético. Do espelho rachado em milhares, viu-se pela primeira vez.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Estou cansada de mim


Estou cansada dos outros


E dos outros


E dos outros


Dos outros em mim.


Arrancá-los-ei a golpes de dedos raivosos


E, sangrando a vida,


Irei embora para Aman


Quem sabe o País das Fadas


Que me deem de comer e de beber


Até que o tempo passe - e passe logo


E a angústia de existir nunca mais atormente


essa mente


fraca de humana.




terça-feira, 20 de setembro de 2011

O Ser (1)

Tão bela, movie-se graciosamente pelo topo das árvores. Há horas, pelo esforço, o suor escorria pelas suas costas. A calça jeans tão rasgata, as roupas tão gastas, tão sujas, tão velhas. Mas tão bela, ó, tão bela. Dançava pelas árvores: era o balé dos cisnes. Os olhos vermelhos e brilhantes como fogo, vívidos.

Purple

Escurecia. Ainda claro o bastante para formar grandes sombras de árvores que correm o chão de folhas ressecadas, grama verde e terra. Com os pés descalços e sujos, ela se equilibrava em um dos galhos. Nada se ouvia a milhas de distância. Ela, de olhos levemente fechados, respirava o ar fresco. Qualquer um menos atento diria ser uma estátua de mármore, bela, pálida, imóvel. Silêncio. Ela sabia o que estava errado. Assim que o sol escondeu seu último raio, ela abriu os olhos. Olhos de gata, negros, profundos. O vestido branco, o forro de renda já amarronzado e rasgado. Os olhos percorriam o horizonte, derrubando gotas de desespero contido. Desde quando as coisas começaram a fazer sentido?

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Bela seja Vossa luz sobre campos e florestas

É nesse corpo grosseiro e inchado, nesse mundo triste de mortais que aprisiono minha alma tão leve e graciosa. Transcendo-o, nessa noite enegrecida de silêncio, e vejo cada vez mais longe as casas engolidas pela neblina. Não sinto o frio úmido que penetraria qualquer casaco de lã. Não sinto o corpo, sou só espírito cavalgando nessa energia incontrolável. Leva-me para longe, deixa-me ver aqui todos aqueles que encontrei nessa vida, tantos daqueles com quem passei séculos de encontros e desencontros. Deixa-me aqui, ó bela do Reino Encantado, que ainda tenho muitas luas para viver. Deixa-me aqui, que se não encontrei Passárgada, é por Avalon que procuro.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Here comes the sun, Little Darlin'

Eu que nunca tinha aberto as portas para o fogo do interior da minha ingenuidade de viver, abri-o para ti. Aquele fogo vital, que se apaga apenas para os fracos de espírito. Aquele fogo que faz o olho brilhar em diamantes. Esse fogo tão precioso, abri e permiti que tu tivesses acesso. Tão ingênua eu fui e sou. Será que ainda não aprendi que o fogo é belo e misterioso, mas também bruto, inconstante, arriscado, nocivo, pernicioso. Frágil. Quantas vezes eu mesma me deparei com falta de combustível para mantê-lo aceso. Mesmo sabendo de tudo isso, abri-o para ti. Não que isso seja de todo o mal. Quantas vezes, também, juntamos o nosso calor e fizemos, do fogo de cada um, algo tão surpreendente. Mas quantas vezes deixaste o meu tão fraco quanto brasa queimando em resto de fogueira... Sinto dizer que estou fechando-o dentro de mim. Fechando-o definitivamente até que as águas antárticas dos seus piores dias estejam em outros pólos. Se eternamente elas assombram o brilho dos nossos olhos, deixarei, assim, que apaguem apenas o teu.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Douglas Adams my ass

Caía da única Terra plana, de grandes cachoeiras desabando no espaço, que não existia. Caía como caiu Aurélia aos pés de Seixas quando ele lhe comprou a liberdade. Caía como tristeza do Pequeno Nicolau ao ver Rex nos braços do verdadeiro dono. Caía como Clarice esperando o livro de Monteiro Lobato no portão da gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados, que nao chegaria em suas mãos novamente. Caía. O peito frio. De um gelo de espinhos vindo de dentro pra fora. Os olhos se fechavam lentamente. Não havia humor nas galáxias.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Andava equilibrando-se no fino fio desenhado no infinito da imaginação humana. No silêncio de noites e dias, de sóis se pondo e luas renascendo, trasnformando o fino fio em hora dourado, hora perolado. Mas ela apenas andava. Com as pontas dos dedos tocava a única superfície sólida com a delicadeza de um mundo quase sem gravidade. Ela andava sorridente, olhos erguidos. O eixo Y nulo. Zero. Inválido. O eixo da insegurança.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O momento passou: deixei passar por entre os dedos.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Good day, lady

Foi perambulando pela noite fria, os pés descalços na grama umida, que ela se deu conta de que ainda estava ali. Por onde foi que andara não sabia ao certo. Tudo estava no seu lugar, as calcas jeans espalhadas pelo chão, os livros empilhados por todos os cantos livres, as virgulas e crases não tão bem colocadas e as filosofias pro-movimento hippie intactas. Exceto as unhas. As unhas estavam muito maiores.

domingo, 22 de agosto de 2010

Freud, nao me fale de Freud

Livro tem que ser daqueles macios, que depois de horas se lendo no leito, apaga-se o abajur e aperta-o no peito. Ele é o urso de pelúcia dos perversos.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Mar de lençóis

Vejo uma fresta de luz entrando pela cortina, já amanheceu há alguns minutos e aqui estão os meus olhos bem abertos, olhos de vidro, sem brilho, sem cor, rubros me sentem, mas não olho no espelho, sinto o corpo doer, está quente demais, e as correntes continuam aqui, amarram-me nos meus pensamentos, levo a cabeça para lá e para cá em movimentos rápidos, fecho os olhos com força. De nada adianta.

Fim de ano

Obedeça
Vá pelas beiradas.
Faça
Não coma
Não olhe
Obedeça!
Coma pelas beiradas.
Acredite
Fique
Mas vá pelas beiradas.
Se eles dizem pra ficar
Fique apenas um pouquinho
Não jogue lenha no fogo
Não beba
Não fume
Não cheire
Fique nas beiradas.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Para minha amiga Glaucia

Pegue uma tigela, misture sorrisos bonitos com olhos castanhos claros cativantes e uma pitada generosa de coragem. Depois de colocar tudo no forno, adicione uma boa dose de insanidade fiskiana por cima. Voilà! Até parece que ela é de comer. Não que ela não seja, mas enfim, deixa pra lá. Ela está sempre com um elogio conveniente na ponta da língua e é sem dúvida uma ótima companhia de bar - tirando as vezes que ela vai a bares para maior de 21 anos. Ela é absolutamente dourada por dentro e por fora, mas ela vai jurar de pé junto que sua cor favorita é roxo. E, por fim, o seu maior defeito de todos os tempos, muito próximo do imperdoável, inadmissível e até inacreditável, é gostar de cenouras.
(amigo secreto Fisk, 13/12)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

6 de Dezembro

Se antes eu tinha certeza de mais de quem eu era, hoje tenho certeza de menos. E foi justo aquilo de que eu mais sentia falta que me tornou assim, difusa. Quanto mais me envolvo, mais perco partes de mim, mais perco a certeza de saber o que quero ser. O que antes me assustava, passou a me fascinar e agora me entedia. Eu sabia que sair do canto seguro teria as suas conseqüências, e tenho agora todos os espaços abertos. O gramado se estende a muitos metros em minha volta. Sento aqui, as pernas cruzadas de índio, os olhos fechados. Concentro-me na temperatura do ar, nos cheios, no vento. Esperando não ter meu estádio destruído.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Relíquias do cotidiano

- Vamos fugir, amor?
- Vamos... Só espera até meio-dia que esse curso é importante.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Encantos (parte II)

Gosto de pinta. Assim, no feminino mesmo. Gosto das pintas marrom-claras dos teus ombros macios e robustos.

domingo, 26 de julho de 2009

Super heróis

Sempre achei graça nessa coisa de relacionamento. As pessoas se aproximam por terem os mesmo gostos musicais, por terem as mesmas inquietações intelectuais, por terem a mesma cor de cabelo, por saberem dos seus e dos meus defeitos. As pessoas não se aproximam de pessoas perfeitas. Se você não deixar transparecer os seus defeitos, elas te olham de longe, contemplando o ser inexistente, contemplando esse ser insistente em querem parecer não-humano. Mas eles parecem gostar de ser não-humanos. Nunca vi ninguém que nunca tivesse feito mal a ninguém, mesmo que não intencionalmente, mas já ouvi inúmeras descrições de seres não-humanos do tipo de causar calafrio pela existencia de tamanha bondade. O duro é saber que elas não existem. Puxa, nossos heróis não existem! Nunca vi ninguém que correspondesse às expectativas dos pais, dos amigos, do chefe, do namorado e do cachorro ao mesmo tempo. Os pais sempre vão achar que você é rebelde, os amigos vão sempre achar que você mudou para pior, o chefe vai sempre achar que você é incompetente - ou competente demais -, o namorado vai sempre achar que você não se abre, e o cachorro vai sempre achar que você é um dono ausente. Mas (tchan, tchan, tchan) os super seres não-humanos chegaram pra nos salvar de todo esse pecado, do inferno, do diabo e tudo o mais. Esses seres conseguem ser bons com todos! Ah, não? Esses aí também não são reais? Mas que diabos! Digo, Deus do céu! Isso porque eu não quero ir para o inferno, só os seres humanos vão para o inferno.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Procastination

Eu queria mesmo era ser chef de cozinha, que sem vinho chileno não cozinharia nada. E que anotações de coisas passíveis de serem esquecidas na agenda valessem mais do que ouro. Assim eu poderia comprar a melhor das câmeras de fotografia, muito pé-de-moleque, uma livraria e um sebo inteiros, e todos os acessórios disponíveis para animais de estimação.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Para o meu amigo Nathan

It seems she never listens
She never speaks
I always give her a message to send
She never seems to understand
Every single night I beg
But it seems she will forever forget
I lie on the ground and stare
The only thing she will ever carry
Is the light shinning in my eyes
Is the burning chest that keeps me alive
Is the love message I ask her to send
With no words but feelings

No matter where he is
When the moon light
Touches his chest
He will know everything I meant once
Staring at the moon
(Algum mês extinto de 2006)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

João e Maria

Crianças em overdose de doce. Adultos em overdose de doce. Bala em baixo da lingua, o mundo girando, as cores mais fortes.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Com-ciência

A minha consciencia é a parte bruta de mim. Hoje mesmo ela disse: tira esse sorriso estúpido da cara, Rafaela.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Encantos (parte I)

Todos os dias, a primeira coisa que olho em você são seus olhos. Atrai-me a eles como um imã a curiosidade de saber se castanhos claros estão ou castanhos esverdeados. Encanta-me esse mistério calado que eles revelam, mas que aprendi a por ele não perguntar. Encanta-me essa alma arisca, indomável, revolta, combinada com abraços e enlaços de braços quentes e fortes. Encanta-me o seu queixo encostando no meu, rígido, enquanto os seus lábios sorvem os meus em grandes goles, como beijo de saudade irremediável.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Desejos mundanos

Queira uma casa grande
Queira a melhor universidade
Queira o melhor trabalho
Queira o maior salário
Queira uma piscina azul bem no meio do seu jardim
Queira o carro do ano
Queira emagrecer mais rápido
Queira ser sempre o melhor em tudo
Queira as melhores roupas
Queira o melhor status
Queira um nariz empinado por tudo aquilo que você não é
Queira ser
Queria ser alguém importante
Queira ser ouvido
Queira salvar o mundo
Queira a revolução
Queira que Deus esteja sentado em uma grande poltrona dourada
Queira encher a cara
Queira usar drogas
Queira fumar até os pulmões apodrecerem
Queira morar sozinho
Queira ser independente
Queira que o tempo pare de passar
Queira ser um leitor assíduo
Queira ter vários livros na estante para mostrar aos amigos
Queira assistir os melhores filmes
Queira ser intelectual
Queira descobrir o mistério da vida

Eu,
bem,
eu sempre quis um cachorro.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Felicidade frágil

Sempre soube que a paz de espírito era difícil de atingir, também sempre soube que a felicidade se sentia bem-vinda onde havia paz de espírito. Por quase um ano e meio eu desconheci a paz de espírito. Por quase uma semana eu a tenho experimentado. Por quase uma semana eu pouso, ousadamente, na última carta do castelo de baralhos que montei. Por quase uma semana eu soube como era não precisar enganar a mente pra que ela não mostrasse imagens que eu não queria ver. Essa quase semana acabou ontem. Ontem eu fui sincera demais, ontem eu achei que conseguiria vencer uma batalha, mesmo que pequena, contra a hipocrisia. Ontem eu cometi um erro cujos traços não se apagarão na contagem infinita dos segundos. Mas tomei uma decisão. Tomei uma decisão de uma vez por todas! Resta-me, agora, juntar as cartas de baralho, violentamente espalhadas pelo chão, e remontar o castelo, no qual eu irei, novamente, regar a semente da felicidade. Desta vez, no entanto, terei de ser especialmente cuidadosa: será a primeira vez que o montarei dentro de uma gaiola.

terça-feira, 7 de abril de 2009

A menina e o barco

O barco perguntou à menina:
-Vem, menina, sobe aqui. Vou levar você pra passear.
O barco era belo, parecia seguro. Mas a menina desconfiada de barcos que era, hesitou antes de fazer qualquer movimento.
-Vem, menina, vou te mostrar quão bela é a noite de nuvens cinzas e céu azul escuro.
A menina tirou o primeiro pé do chão, seco e sólido, e o firmou cuidadosamente dentro do barco. Este deu uma leve balançada, que quase fez a menina desistir da audácia. Mas o vento da noite pareceu segurar-lhe a mão para que ela não ousasse tirar o pé dali, quase deu um empurrãozinho para que ela firmasse, finalmente, o segundo pé, embarcando por inteiro naquele terreno desconhecido, úmido e instável.
Conhecia bem estes barcos, a menina. A última vez que ela resolveu que era hora de largar a terra firme e ir passear em um barco, ele viajou com ela por longas distâncias, contou a ela milhões de histórias sobre cidades frias, comidas e costumes estranhos, e, repentinamente, desapareceu como faz o mágico com a pomba em um lenço. Sumiu sem deixar vestígios, desapareceu, desintegrou-se no ar. A menina, quando se deu conta, batia-se contra as negras ondas do lago, que de tão frias enfiavam agulhas doloridas em todas as partes do seu corpo.
Ela sentou, tensa, na taboa do meio. Olhos para o local onde a poucos segundos haviam habitado os seus pés. Apertou as bordas do barco como isso fosse garantir que ele não desapareceria. Colocou as mãos entre os joelhos, como que para aquecê-las, e só então se deu conta dos mais diversos objetos que se encontravam no chão do barco.
Uma coberta, um galho de árvore, um remo, cordas, chocolate, um livro e música. O barco, notando que a menina olhava com curiosidade para tais objetos, resmungou:
-Sempre estiveram aí.
-Posso ver? perguntou a menina
O barco deu de ombros e respondeu:
-Como quiser.
A coberta era macia e quente, fazia carinho na pele. O livro, intitulado de "Como fazer uma vela com um galho, uma coberta e cordas" era pequeno, de poucas palavras e muitos desenhos. Ela seguiu os passos e encaixou no fundo do barco o galho, já muito parecido com uma vela. Quando assim o fez, o barco aumentou de velocidade, o que fez com que a menina tentasse agarrar todo e qualquer material na borda do lago que pudesse diminuir a velocidade, ela quase de desespero pulou, de uma vez por todas, para o lago frio. Arrancou a vela improvisada arfando como se tivesse corrido quilômetros. O barco quando viu a restrição da menina quanto à velocidade, fez com que as águas passassem mais devagar pelo seu casco, navegou calma e cautelosamente. Isso, decerto, fez com que a menina se acalmasse.
O barco sugeriu que ela vestisse o cobertor e deitasse no seu peito, pra que assim ele pudesse lhe contar histórias daquela música que infestava o ar com seu cheiro doce, enquanto eles observavam a lua sorridente no céu cheio de estrelas. Essa história puxou muitas outras, passaram os dois, o barco e a menina madrugada a fora contando histórias, memórias e glórias. Ela estava devidamente aquecida e devidamente entretida nas histórias pra perceber o aumento da velocidade no barco. Isso era, possivelmente, sinal de que o barco estava feliz. Ele a segurava contra o peito como se ela fosse sair gritando como já havia feito anteriormente. Adormeceram os dois sob a luz fraca das estrelas e o balanço suave do mar.
No dia seguinte, quando o barco acordou, percebeu que a velocidade havia aumentado, e que desta vez não havia sido ele! Surpreso, ele olhou a menina remando desajeitada, duas vezes para um lado, duas vezes para o outro.
-Estou gostando, justificou ela
-Também estou. Pega um chocolate e deixa eu te contar mais uma história.
Coutou-lhe histórias de outras meninas que haviam sentado naquele mesmo lugar que ela estava agora. Contou-lhe como elas brutalmente pularam do barco, virando-o de cara para o rio congelado, derrubando tudo aquilo que eles haviam colecionado juntos. Ela prometeu-lhe pedir pra ele encostar na borda do lago assim que ela quisesse descer, de forma a não deixar nenhum dos dois vulnerável às águas de agulhas.
O barco estava perdido em pensamentos, quando reparou a menina parada em pé no barco. Ele gritou, desesperadamente:
-Não pule!
Ela olhou-o nos olhos e disse em tom de brincadeira:
-Só se for pular para os seus braços!
Só então ele reparou na vela feita de galho, cobertor e cordas caprichosamente encaixados a favor do vento. A menina ajudava com o remo quando necessário, mas estava,0 na maioria do tempo, de olhos fechados e braços bem abertos, deliciando-se com o vento passando rápido pelos seus cabelos.
-Você não está com medo? perguntou o barco
Ela sorriu.
-Não
Ele limitou-se a retribuir o sorriso.

domingo, 5 de abril de 2009

Como fazer o tempo passar mais rápido

Escute o despertador
Acorde, lave o rosto, olhe no espelho
Não pense se esse dia vai ser único
Não pense que esse é o único dia 5 de abril do ano de 2009
Engula o café da manhã sem sentir o gosto
Ande com pressa
Não sinta o vento
Não olhe as flores
Não olhe o céu
Pegue o ônibus, não olhe pra ninguém
Não olhe pras imagens passando na janela
Perca-se nos pensamentos cegos
Só pense no dia ocupado como todos os outros que vem aí
Desça do ônibus, ande rápido
Não olhe nos olhos das pessoas da rua
Olhe para o chão
Assista aula, mas sem prazer
Pense somente nas provas, nos trabalhos, nos artigos
Trabalhe, mas trabalhe como máquina
Não seja ousado
Faça o que os outros querem que você faça
Não olhe o pôr do sol
Coloque na sua cabeça que você não tem tempo pra nada
Ame sem intensidade
Faça sexo sem insanidade
Não saia da rotina
Não saia da rotina
Não saia da rotina

segunda-feira, 2 de março de 2009

Bem-vindo, John

Nós somos católicos, muçulmanos, nós somos todos ateus, nós somos filhos de Deus, nós somos carne, osso e sangue, nós somos seres superiores, nós somos animais, um macaco pelado, nós somos cultura, nós somos racionalidade, nós somos sentimentos, nós somos socialistas, anarquistas, comunistas, capitalistas, nós somos frágeis, nós somos fortes, nós somos filhos, irmãos, pais e avós, nós somos alegres, nós somos tristes, nós somos resultado do meio, nós somos destinados a morrer, nós somos médicos, artistas, matemáticos, nós somos globalizados, nós somos selvagens, nós somos violentos, nós somos bélicos, nós somos pacíficos, nós somos amados e odiados, nós somos divertidos, silenciosos, espontâneos, tímidos, extrovertidos, nós somos velhos, nós somos novos, nós somos resultado de uma explosão, nós somos barro, pedra e um assoprão, nós somos todos da mesma nação, nós somos todos irmãos, nós somos todos inimigos, nós somos altruístas, nós somos egoístas, nós somos o que comemos, nós apenas somos o que somos, nós somos eu, você e todo o mundo, nós somos traumatizados, nós somos doentes, nós somos saudáveis, nós somos o que dizemos, nós somos o que fazemos, nós somos constantes, nós somos imprevisíveis, nós somos iguais, nós somos diferentes, nós somos únicos, nós somos um todo, nós somos uma parte. É gostoso ser tantas coisas.

Bem-vindo às perguntas sem respostas.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Se não têm pão, comam brioches

A voz do pretinho que canta não é a sua, não são os seus dedos que se movem rapidamente pelas cordas do violão. Você, momentos antes do celular reclamar no seu bolso, tocava o seu violão, passeando com a sua voz nos ouvidos daqueles a sua volta, ainda não descobri porque espero tanto pra ouvir-te se a ansiedade só aumenta ainda mais. Uma vontade insana de estar aí do seu lado me faz fechar os olhos e de tentar fazer a mente viajar os poucos quilômetros que nos separam, mas consigo apenas chegar até o horizonte de árvores negras sumindo no breu. Mecho-me, desconfortavelmente, na cadeira enquanto todas as outras pessoas olham alegremente umas para as outras, felizes, em paz. Não que eu esteja infeliz, o céu está maravilhosamente estrelado, a brisa salgada balança os meus cabelos com delicadeza, a temperatura está ideal, a companhia é ótima, mas hoje, especialmente hoje e agora, sinto sua falta como nunca senti antes. Hoje preciso de você, preciso dos seus sorrisos, das suas caras, dos seus olhos, estejam eles castanhos ou verdes. Falho vergonhosamente em me distrair. Eu era tão boa nisso! O livro que leio me serve de aspirina para esse aperto no peito, e a culpa é toda sua. Mal consigo desviar a imagem, com esse peito formigando, do seu all star preto momentaneamente molhado, vestido nos seus pés como se nunca tivessem estado em outro lugar antes. Quase me perco pelos corredores silenciosos do hotel, já tarde da noite, delirando com o som abafado dos seus passos ao meu lado no carpete, sentindo o calor na mesma mão que a sua não segura. Entendo agora esse seu medo de sofrer, do medo da abstinência forçada nesse vício sufocante. Fica, amor, senta aqui do meu lado. Abraça-me forte e me olha nos olhos.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Roda Gigante

Um amor sabor menta e cigarros, cheirando perfume e roupas limpas, tira-me o sono, enlouquece-me de desejo, faz-me arrancar a coberta do corpo. Obrigo-me a afundar os longos fios castanhos no travesseiro, longos fios que sentem falta do toque dos seus dedos, mesmo eles tendo se despedido há tão poucos minutos. Vou perdendo a consciência enquanto a sua voz rouca e grave canta-me as minhas canções favoritas. Suspiros e respiração pesada vencem o coração palpitante, finalmente, deixando a mente livre para os meus mais secretos sonhos.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Feliz Aniversário

Pai, eu não me estou “desimportantizando” quando fico em silencio diante da pergunta “o que você quer de aniversário”. Eu queria de aniversário de 18 anos que as pessoas se amassem mais, que eu vivesse mais, que eu descobrisse que cada minuto é único. Queria de aniversário que eu deixasse as ideologias e os preconceitos de lado e só me deixasse ser, queria parar de me importar tanto com coisas que eu não me importo, que eu fizesse coisas que eu nunca tinha feito antes, que eu fosse tolerante. Queria uma festa de família em um parque, onde as pessoas sentariam na grama, usando chinelos e roupas leves, e conversariam sobre as coisas mais levianas dessa vida, onde todos estariam se sentindo bem, onde não existiriam problemas de família nem nenhum membro dela faltando. Queria uma festa de aniversário sem lista de convidados, na qual só iriam as pessoas que honestamente se importam comigo. Eu queria poder sair de casa com uma mochila nas costas e um travesseiro, ir até o aeroporto de ônibus e decidir lá qual avião pegar. Eu queria pegar o mesmo ônibus e ir até o aeroporto só pra ver os aviões pousarem, pra ver o sol baixando no horizonte enquanto as pessoas entram e saem. Eu queria que todos os dias fossem os aniversários de todas as pessoas e que todas elas ganhassem felicidade de presente. Eu queria de aniversário tempo, tempo que nunca ninguém tem. Queria saber tocar violão. Eu queria que a internet aqui em casa funcionasse, que nós assistíssemos mais bons filmes em família, que eu pudesse dormir no sofá sempre que eu quisesse, queria poder deixar a cama desarrumada quando desse vontade, queria que a Pucca fosse mais amada, queria que o Charlie morasse com a gente, queria um atelier próprio, queria que o Leo usasse menos o computador, queria que a mãe ficasse menos na cama, queria que você chegasse mais cedo do trabalho, queria que o meu cactus não tivesse morrido, queria o meu computador no meu quarto, queria que a casa fosse menor, queria que o jardim fosse mais espontâneo, queria que a empregada almoçasse com a gente, queria sentar na grama lá fora com vocês três e conversar sobre a semana que passou. Grandes coisas que o dinheiro não compra.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Feliz fôlego novo

Aquele frio na barriga que vem todo ano se atrasou 3 dias em 2009. Engraçado o que me aconteceu hoje, dia 3 de Janeiro, às 4 horas da madrugada, olhando as velhas fotos e os velhos vídeos de um, dois, três, até quatro anos atrás, ainda salvos no meu computador. Sempre tive péssima memória, e me surpreendo até hoje por ainda ter grandes amigos depois de quase esquecer aniversários, programas de Domingo, assunto das conversas, nome dos namorados e namoradas, enfim, a lista é grande. Porém, hoje, enquanto eu olhava estas fotos de festa junina, em um colégio da minha cidade, eu lembrei do cheiro, da temperatura, das vozes das meninas na foto, das risadas, das piadinhas, dos sentimentos. Olhei todas as minhas fotos. Todas elas, sem me esquecer de uma única. Veio, finalmente, aquele frio na barriga, aquele que me visita em todas as passagens de ano. Porque ele demorou tanto pra vir eu ainda não sei ao certo, talvez tivesse sido essa cabeça de adulta, tão diferente daquela nas fotos, preocupada com os foguetes arrancando grunhidos do cachorro cego que eu guardo em casa com carinho, preocupada com o início das aulas, mesmo elas só começando daqui a dois meses, preocupada com o início do ano letivo como professora na escola de inglês, mesmo tendo uma viagem ao litoral antes que isso acontecesse, preocupada com o coração, talvez tivessem sido dezenas de coisas. O que eu sei, de fato, é que estou sentindo o frio na barriga agora, essa coisa gostosa na boca do estomago que faz acelerar o coração, como se fosse uma força dizendo "é nesse ano que você vai mudar o mundo", "é nesse ano que as pessoas vão se amar mais", "é nesse ano que você vai viver cada dia como se fosse único". Fôlego, era disso que eu precisava.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Era uma vez uma parede branca e uma gaiola

Era uma vez uma parede branca e uma gaiola. Pendurada em uma parede branca e infinitamente alta, estava um gaiola dourada, brilhante e com belos traços delicados. Gaiola mais bela nunca se tinha visto antes. Do topo da gaiola, acompanhando as douradas hastes, desciam sedosas cortinas peroladas que partiam do topo, faziam dois laços, um em cada lado da gaiola, e desabavam serenamente sobre o chão amarelo brilhante. Enroladas nelas, brincavam dois pequenos gatinhos peludos. Um era branco de olhos negros, de nariz achatado e rabo comprido e peludo. O outro era pardo de três cores, olhos azuis acinzentados, um pouco menor que o seu alvo irmão. Brincavam ao som de notas musicais saídas do pequeno rádio branco sobre a estante marrom avermelhada. Ao lado desta estante, dormia tranquilamente um cão branco com manchas marrons claras de grande porte. A música era doce, banhava o belo sofá vermelho de grandes almofadas com uma paz indescritível. A vista da gaiola era deslumbrante. Viam-se os cílios nos puxados olhos dos chineses e dos japoneses, o peixe com batatas servido na casa dos ingleses, o azulejo rachado do Louvre dos franceses, o delicado brinco da jovem italiana, o botão do rádio do carro do americano, o pólen na abelha recém colhido da mesma flor avermelhada que infestava o ar com um odor agradável. Odor que passava dentro da fechadura trancada da porta da gaiola, dividindo espaço com a chave dourada firmemente encaixada na trava interna, que mantinha a porta trancada. Tão perfeitamente encaixada que uma leve volta bastaria para abri-la sem esforço. Suspensos no ar, logo abaixo da pequena porta, encontravam-se dois pezinhos. Eles balançavam para lá e para cá, tão rápidos quanto o lento ritmo da música. Dois pés vestidos com tênis bem amarrados de longos cadarços. As meias curtas nas canelas não escondiam a fina corrente prateada no tornozelo direito, e a saia, por sua vez, escondia um pesado livro de capa dura sobre o colo. Na altura do joelho, encontravam-se rendas cobertas com um tecido leve, o mesmo que cobria os ombros, misturando-se com os fios de cabelo castanhos ondulados. Cabelos estes que brincavam sobre os braços, descansados na ultima delicada linha de metal dourado, escondendo o brilho dos olhos castanhos, quase pretos, da menina que tristemente observava as luzes fora da gaiola. Ela havia entrado ali por escolha própria, nunca tinha sentido tanta atração pela vida aprisionada. Os dedos brincavam com um lápis de cor branca, tirado da grande caixa de madeira com dúzias de cores, as quais se encontravam espalhadas sobre o tapete - a cor azul perigosamente rolara para perto da beirada. Ela movia a ponta do lápis no contorno das grandes nuvens no céu azul. Ela sabia bem porque estava infeliz. Sentia falta da vida de vôos rasantes nos mares e lagos deste mundo, com vento passando veloz pelos longos cabelos. Ela sabia, também, que podia usar a chave da porta a hora que desejasse, mas que nunca conseguiria achar novamente uma gaiola tão satisfatória quanto aquela na qual ela tristemente sonhava com a chuva escorrendo livremente no seu corpo. Por hora, ela vive neste dilema, mas contar-te-ei o que vai acontecer. Ela vai deixar a saudade, mais uma vez, presa na gaiola e vai se jogar dela para saciar as asas com vôo livre, sussurrando a frase que já a havia atormentado em sonhos: "que me venham estes horizontes."

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Divagações


Ah, essa vontade de ficar sozinha, de viajar sozinha, de deixar o celular em casa e não falar com ninguém. Ah, como eu queria esquecer de tudo, só por um minuto, pra encontrar tudo de novo que se criou em mim. Ah, que vontade de ter tempo pra botar as coisas no lugar, de me conhecer melhor, de decidir qual Rafaela eu vou ser daqui pra frente. Ah, que saudade daquele tempo que a saudade ardia em chamas, que a vida era só um detalhe, que eu vivia ocupada demais estando feliz. Ah, pra onde foram todas as certezas, todas as respostas, toda a fé? Ah, sou mutável demais, inconstante demais, diferente demais. Ah, eu sei o quão difícil é achar mãos leves onde os pássaros pousam livres, mas existem outras maneiras de se aprisionar as asas da mente sem usar uma gaiola.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Discrição

Gosto tanto, discretamente, quase secretamente, desse seu carinho discreto, desse seu jeito discreto, desse seu abraço apertado, desse seu sorriso discreto, discretamente dizendo que o coração bate mais forte. Gosto tanto da sua mão quentinha nas minhas costas, na minha cintura, no meu pescoço, do seu cheiro que fica nas minhas mãos e me tira o sono, desse seu beijo que foi feito pra encaixar no meu, do timbre da sua voz sussurrando músicas no meu ouvido antes de dormir. Sinto, discretamente, quase
secretamente, sua falta.

domingo, 9 de novembro de 2008

Coisas que nunca vou dizer


Têm coisas que eu nunca vou dizer,
coisas que eu nunca vou dizer,
nunca vou dizer,
nunca.

domingo, 2 de novembro de 2008

Bomba Relógio

Por favor, não me diga que a vida vai ser sempre assim, corrida, atarefada. Que ela vai passar assim, rápida, despercebida. Por favor, não me diga que eu poderia escolher não trabalhar, que eu poderia escolher um curso mais fácil, pago, só porque eu poderia pagar por um. Por favor, não me faça ignorar o fato de que milhares de pessoas trabalham e estudam e cuidam dos filhos e cuidam das famílias, sem ter escolha, sem ter tempo, sem ter dinheiro. Por favor, não me diga que vou ter que sempre esperar pelas férias para ler os livros que tenho vontade, para escrever as coisas que tenho vontade, para rever os velhos amigos quando der vontade, pra fazer arte quando der vontade, pra arrumar o meu quarto quando der vontade. Por favor, não me diga que vou ter que sempre viver pela metade, que vou sempre estar cansada demais pra ver quão belo está o dia, pra ver quão bela é a cidade, pra ver quão bela é a florzinha no chão do meu caminho pra casa. Justo eu, justo eu que notei, indignada, o quão despercebido estava o sol rubro do entardecer aos olhos das pessoas no ônibus. Pobres pessoas no ônibus. Eu as fuzilando com os olhos e elas estavam apenas cansadas demais, apenas pensando no pouco tempo que teriam para brincar com os filhos, no pouco tempo que teriam para passear com o cachorro, no pouco tempo que teriam até a hora de dormir, pra depois disso acordar e pensar no pouco tempo que teriam para tomar café e partir. Partir pra mais um dia de cheiros, de sons, de pessoas, de detalhes, todos ignorados e despercebidos. Por favor, não me diga que isto é vida, por favor, não me diga que isto é que é viver.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Raras lágrimas de um amigo


Enquanto o céu desesperadamente chora lá fora eu leio aqui sobre as raras lágrimas derrubadas por um all star preto qualquer. Leio aqui sobre as suas angústias tão bela e inesperadamente desenhadas em forma de escrita.
Se nem as várias gotas de água salgada que formam fortes ondas conseguem acalmar a tristeza do mar, como poderia uma pequena lágrima de água salgada acalmar a tristeza do mundo? Vou te contar um segredo, amigo: escreve! Escreve, que escrevendo o aperto do peito diminui, escreve pra que as suas lágrimas sejam lidas, escreve mesmo se for falar de "metalinguagem sem meta", "de política e corrupção, de cupido trapalhão, [de] cidadão sem opinião". Escreve pra me deixar de queixo caído como agora estou.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Conhecimento(s)

Céu azul de nuvens brancas, para o romântico, é a certeza de estar vendo a mesma cena que a amada a quilômetros de distância. Céu azul de nuvens brancas, para o físico, são pequenas moléculas que refletem, cada uma a sua maneira, a luz branca vinda do sol. Céu azul de nuvens brancas, para o astrônomo, é o alívio de saber que o sol ainda não cresceu o suficiente para nos engolir por completo. Céu azul de nuvens brancas, para o carrinheiro, é um dia de trabalho sem frio ou chuva. Céu azul de nuvens brancas, para o ordinário, é apenas mais um dia com céu azul de nuvens brancas. Céu azul de nuvens brancas, para o filósofo, é apenas uma ilusão dos sentidos. Tudo não depende do contexto no qual você pensa? Como se tira conclusões se a sua conclusão vai ser só mais uma dentre tantas outras?

sábado, 27 de setembro de 2008

Vertigar

Tudo o que nós sentimos não se limita à mera classificação de paixão e amor. Aqueles que falam mais de uma língua vão concordar comigo que, as vezes, é muito difícil explicar ou pensar coisas subjetivas na língua não-nativa com a mesma versatilidade que na primeira língua. Será, então, que nós convencionamos modos de se atrair uns pelos outros culturalmente? Será que no "desenvolvimento" (sim, aspas, já que desenvolvimento é uma palavra perigosa) das línguas, não se criam palavras objetivas com significados subjetivos para "sentir-se atraido", e nós, por mais que sentíssemos algo diferente, colocamos o que sentimos na classificação já existente? Desculpem, leitores, se escrevo rápido demais e pulo muitas etapas do pensamento, mas "I can't help it", nem eu sei bem sobre o que eu estou falando. De qualquer forma, e se eu inventasse um novo lexico? Que tal vertigar, verbo transitivo direto? Eu vertigo, tu vertigas, ele vertiga.

Olho pra baixo, o céu, as estrelas e a lua parecem entrar no meu peito, ignorando a falta de espaço e tirando-me o ar por completo. Olho pra baixo, pro seu all star branco e sujo, pros seus cabelos louros e lisos, pros seus olhos castanhos de longos cílios e a vertigem é quase infinita. Eu o vertigo, vertigo-o demais. Mas não te quero, não te amo, não estou apaixonada. Apenas vertigo-o.

sábado, 23 de agosto de 2008

Veteranos e vassalos

Hoje, eu acordei. Abri meus olhos e vi! Vi as mesmas coisas que sempre via, escutei as coisas que sempre ouvia, mas elas estavam tão diferentes! Eu voava alto, sentia o vento. Eu via pessoas coladas no chão, algemadas ao chão, presas ao chão, olhando pro chão, conversando sob o chão sobre o chão, sem mover um músculo. Embora eu as tocasse, tentasse fazer com que elas olhassem para cima, pro céu sem limites que elas estavam perdendo de ver, elas continuavam imóveis, apenas exisitindo, subexistindo, coexistindo com o chão. E com o céu. Mas este, elas se recusavam a conhecer. Talvez o chão fosse menos assustador, fosse mais seguro, mais sólido. Já eu, ah, eu dava piruetas no ar! E como eu estava feliz. Só podia lamentar pelas pessoas lá em baixo, apesar de, vez ou outra, tentar, inutilmente, voltar suas faces para cima sem sucesso. Ai! Uma pedra me acerta, em cheio, no ombro. Olho pra cima e sinto os olhos lacrimejarem. Muito claro. Vejo apenas vultos, uns com expressões tensas, outros sérios, outros ainda com sorrisos deboxados. E eu achava que voava tão alto! Com que asas chegaram até lá estas pessoas? Quero-as também, as asas. Ai! Mais uma pedra. Por que me agridem, me machucam, me detestam, me ironizam, me riem, me excluem? Não quero ser como eles, mas quero ver o que eles veêm, da altura que eles veêm. Um dia meus olhos ainda se acostumam com a claridade.

domingo, 10 de agosto de 2008

Escola de areia

Eu queria estudar. Queria estudar aqui mesmo sentada nesta cadeira na beira da praia. Tragam os professores. Vamos estudar o valor da vida, vamos debater se ela vale ser vivida, se ela se quer vale alguma coisa. Tragam os artistas. Vamos esticar uma folha branca de metros de comprimento na areia e usar as mãos banhadas em tinta pra pintar o que a alma pedir. Tragam os matemáticos. Pra mostrar aos nossos olhos leigos como tudo neste universo são números. Quero estudar a vida, quero estudar soluções, quero estudar o amor e todo o seu complexo. Quero construir escolas de areia. Nas minhas escolas de areia todos vão estudar aquilo que tiverem vontade. Tragam bolas de futebol, arco e flechas, violões e violinos. Tragam tinta e pincel, tragam livros de Rousseau, de José de Alencar, de Edgar Allan Poe. Tragam idéias, experiências, curiosidade, criatividade. Tragam todos os países, quero todos os países! Tragam a bíblia, o corão. Tragam cachorros, gatos, cavalos, passarinhos, tragam a arca de Noé inteira! Temos espaço para tudo na minha escola de areia, seja bem vindo.

E lá se vão ao vento os pequenos grãos da minha escola. Mas não tentem segurá-los no lugar, alunos, eles estão indo levar as nossas idéias à outras mentes.

Vizinho de janela

Deixei-te lá e nem lembro que você respira. Virou lembrança que só vem com esforço da memória. E você, será que lembra de mim? Será que lembra da garota dos olhos atentos às suas janelas? Que quase perdeu o coração pras estrelas ao ver seus cabelos molhados e a cor da sua pele contrastando com a toalha branca que te cobria a cintura? Ah, irresistível... Ainda tenho a face rubra ao lembrar do momento que encontrei teus olhos depois de ter degustado com os meus tudo o que a toalha não cobria. Tomara que não seja bom leitor de sorrisos discretos, vizinho, posso ter te contado, naquele momento, o quanto te desejava. E te quis por três dias. Te quis loucamente por três dias e você nem olhares me deu. Vou mandar esses seus cabelos cedosos cujo cheiro desconheço para o inferno. Vai, que não te desejo mais. Assim, de longe, sem a visão do seu belo rosto, não consegue me atrair com essa sua indiferença. (Julho 2008)

Imaginação

Os olhos ansiosos esperam você passar pela porta de vidro ao som de aviões pousando. Sei, porém, que no fundo eles esperam por outra pessoa, sei que no fundo são olhos azuis que os meus procuram. O abraço de saudade é-me frio. Não são esses seus braços que me envolvem, não é esse seu coração pulsante, não são essas suas mãos de poeta que eu esperava. O coração bate tão forte e o peito machuca tanto, que sinto as lágrimas virem aos meus olhos ao som da sua voz falando aquela língua.
Sinto tanto a falta dele, daquele cujo abraço não vou sentir, daquele cujos lábios não vou beijar.

Sorriso

Têm vezes que se sente minúsculo, sobrecarregado, impotente, envergonhado, ignorante, angustiado, indeciso, ingênuo, inseguro, um grãozinho de areia na praia sem força, sem fôlego, sozinho no meio de tantos outros. Têm vezes que se sente o vento no rosto e pensa estar voando, mas nem percebe que o chão se aproxima e o vento que se sente é o vendo amargo da queda. Têm vezes que se esquece de, antes, fazer o bem para si pra depois fazer o bem para outros: muitos chamam de individualismo, muitos outros também chamam de inteligência. Têm vezes que as bombas no Iraque são silenciosas comparadas com a guerra que acontece nas veias de sangue ácido e que se veste um sorriso, uma máscara pra ninguém desconfiar, pra ninguém entrar no fundo que se quer esconder, abafar, sinlenciar, esquecer. E em todas essas vezes, o grito desesperado por paz é calado. Afinal, gritar pra que? Gritar pra quem? (Abril/Março 2008)

Café com torradas


Ah, extremista, como sofre - a toa! Não sabe que a resposta está sempre no meio? Sou muito mais o meu café com torradas e o coração leve. (Abril 2008)

Canção de ninar

Gotas pretas de maquiagem lavam o meu rosto bem pintado e borram os meus lábios caprichosamente delineados de vermelho.

O desespero do pai em ver a cria tomar o proprio rumo aflora numa face de lobo cedento de sangue. É o medo de perder o troféuzinho sorridente da sua estante que coloca em cada palavra um tom de ditador. Enquanto ele diz como as coisas são, como elas deveriam ser e como eu não sou como ele gostaria que eu fosse, as lágrimas banham os meus cabelos de cachos bem feitos para a festa que eu escolhi não ir. (Junho 2008)

Arrepio

Eu adoro a brisa que vem do mar. Esse vento de cheiro salgado, que bate na pele das coxas e arrepia os pêlos do corpo tanto quanto a água quente do chuveiro escorrendo nas curvas das costas. (Julho 2008)

Cenouras


Eu odeio cenouras. Cenoura ralada (bem) misturada na salada eu gosto. Gosto até da cenoura naquele negócio bom que a minha mãe faz de maionese, cenoura ralada, batata palha e milho verde. Bolo de cenoura com cobertura de chocolate é a melhor coisa que já inventaram, perde só pra sorvete e pro brigadeiro da Mi, mas cenouras puras nem pensar. Não sei como botaram aquelas cenourinhas no Mc Donalds, que pessoa em sã consciência troca batatinhas fritas por cenouras? Ah, eles estão muito preocupados com a saúde das pessoas terrestres: "eu quero um número um com coca grande, uma tortinha de maçã, um topsundae de chocolate e cenourinhas"; aha, tá. E olha que eu estou tentando tirar os fastfoods da minha relação de lugares-apropriados-para-se-comer, o que, infelizmente, não diminui muito a lista e não contribui tanto assim com os meus quilos em excesso. Quer dizer, quem se importa com cenouras? O coitado do coelhinho da páscoa tem que posar pr'aquelas fotos de páscoa com uma cenoura na mão tendo um milhão de quilos de chocolate em volta. Ninguém - repito, ninguém - troca chocolate por cenouras. Apesar de que pro coelho da páscoa deve ser um tanto complicado, ele deve se achar meio canibal comendo chocolate. Canibal, entendeu? Hahahahaahahaha, er. Enfim, eu viveria perfeitamente bem se não existissem mais cenouras no mundo. Não, não, eu sentiria falta do bolo. Eu viveria perfeitamente bem sem cenoura cortada em rodelas, isso sim. Eu aqui falando de cenouras e você continua lendo. Ou você ama cenouras e quer me enforcar, ou você compartilha este ódio e quer casar comigo, ou você também compartilha a obsessão por coisas escritas e nem liga pra tal da cenoura, ou você é só uma pessoa estranha como todas as outras. Sei lá, só sei que não como cenouras, nem no melhor restaurante da França. Se eu tivesse que comer cenouras na França eu ia passar a maior vergonha, seria muito difícil fazer cara de eu-gostei-dessa-droga-com-gosto-de-chulé se tivesse cenouras no meio. Blá, blá, blá, cansei de falar das cenouras.

Freedom


Quero a liberdade! Pra onde ela foi? Volta! Volta, que eu te quero. Quero já, por favor! Por favor...

Colombo


Os pés me levam pelo caminho de casa, mas nem percebo - a mente se perde nos poemas que os olhos lêem, mania esta minha de ler andando. O livro que carrego é leve, fácil de segurar. Os cordões desamarrados do tênis me tiram do devaneio, brincando com o mesmo vento que sinto acariciar-me os cabelos e beijar-me a boca. Acordo do mundo que me criei e me encontro na praça que mais gosto. Sento-me pra escrever o que a ponta da caneta aqui escreve e a praça não poderia estar mais bela, o silencio e o vento e o sol a inundam, beleza que só explicaria um poeta. Me afogo aqui, junto com grama e flores e plantas e lá se vai a garrafa jogada por alguém. Então, descubro-me amando. Amando loucamente o céu e o ar que a cobrem, cidade. Te amo tanto! E nem sabia. (Junho 2008)